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A quem cabem as críticas aos movimentos sociais?

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A travesti negra, pobre, que não tem passabilidade, que precisa se prostituir para pagar o lugar onde dorme e aquilo que come, tem tanta propriedade para fazer crítica e reclamação, para dizer que está sendo desconsiderada por governo, sociedade e movimentos sociais quanto qualquer outra pessoa que tenha função em ONG, que seja membro de coletivo, que tenha cargo no governo.

TODAS as pessoas em situação vulnerável precisam ser ouvidas, suas críticas precisam ser analisadas, pois são seres humanos e apenas a própria pessoa é que é capaz de dizer com bastante propriedade os seus sofrimentos, suas reivindicações.

Muitas vezes parece que para fazer crítica você precisa mostrar o curriculum vitae.

Em quantas manifestações você precisa estar presente para fazer qualquer tipo de crítica? 5, 10, ou será que com 50 já dá pra abrir a boca sem ser para dizer amém? Em quantas mesas de debate você precisa ter participação? 1, 2, 100 talvez? Qual seria o número exato? Enfim, é evidente que há críticas que se propõem a fazer reflexões, a repensar sociedade, movimentos, ações – e há críticas que só pretendem a destruição, nenhuma proposta de intervenção.

Há de se peneirar uma da outra.

Eu não tenho nem carteirinha de ONG, nem a força para mobilizar um movimento inteiro; tampouco qualquer recurso financeiro ou me reclamo como porta-voz de coletivos: tudo que consegui na vida, consegui por que EU corri atrás, nunca ninguém bateu na minha porta perguntando se eu queria ser tratada como gente.

Se tenho faculdade, foi por que estudei e ganhei bolsa integral, pois fosse um pouco menor a bolsa, eu não conseguiria estudar.

Se tenho bagagem profissional, foi por que dei a cara pra bater, ouvindo muitos nãos, aguentando discriminação e humilhação em muitos lugares: por que não é apenas mais difícil arrumar um emprego quando se é “diferente” da maioria, é também mais difícil se manter nele, onde você é o tempo todo muito mais cobrada que os demais.

Se saí da casa dos meus pais, foi por não querer mais ser agredida pela minha própria família, e fazendo das tripas-coração para pagar o aluguel e todas as demais despesas, por que não é fácil mesmo morar sozinha sem ajuda de ninguém.

Nada disso que fiz na vida, eu fui bater na porta de alguém para pedir clemência.

Discursos são muito bonitos, ou mesmo muito dolorosos, mas a realidade da vida, a solidão que algumas pessoas carregam, é extremamente pior: e se eu desconsiderar que a vida da gente é muito difícil, eu teria que mentir pra mim mesma a minha própria vida.

Em contrapartida, fiz tudo isso por que eu precisava honrar a minha consciência, mesmo desagradando a sociedade – a vida da gente passa muito rápida, muito em breve apodreceremos todos e seremos comidos pelos vermes, ninguém é melhor que ninguém: a morte é implacável, mas a minha consciência de ter feito o que estava ao meu alcance para que eu, Daniela, sentisse orgulho da pessoa que eu sou, essa está tranquila.

E nada do que fiz na minha vida foi esperando aplausos, aliás, se eu estivesse esperando por eles, estaria até hoje sentada e com o corpo se putrefazendo.

Nunca dependi de elogios para sobreviver.

E foi por conta das minhas dificuldades particulares que percebi que muitas pessoas à minha volta passavam pelo mesmo, que resolvi fazer micropolítica.

Que grande parte das vezes funciona muito mais que megaplanos estrondosos que se querem alcançar multidões e acabam apenas na propaganda. Ser transmulher dentro dessa sociedade que vê mulheres como inferiores e transmulheres como identidade abjeta, é em si mesmo um ato político, é em si mesmo uma reclamação de urgência e um acinte a olhos que se negam a compartilhar do mesmo oxigênio que nós. Posso não modificar a realidade de todos na minha cidade, no meu estado, no meu país; mas farei o que estiver ao meu alcance para que a vida de outra pessoa semelhante a mim, seja mais fácil do que a minha foi ou do que a minha é: seja informando como denunciar uma agressão, seja informando sobre hormônios e médicos, seja servindo como um bom ouvido, compartilhando experiências e aprendendo.

Eu quero aprender até o dia que eu morrer. Eu tenho todo o direito de fazer críticas, como todos têm o direito de me criticar ou criticar a minha militância, mas eu reservo-me no direito de também dar ouvidos a quem eu achar mais conveniente. Eu tenho o direito de dar ouvido a quem me faz bem, por que me conhece, por que sabe das minhas lutas, criticando ou aplaudindo; pois desconfio que um amigo que sempre te aplaude, bom amigo não é.

Eu posso não concordar com suas opiniões, você pode não concordar com as minhas; mas seguiremos dentro desse leque diverso de visões – já pensou se todos fossem obrigados a concordar sempre? Como a gente escolhe a opinião mais correta? Será no 2 ou 1? No par ou ímpar? Quem pode lhe assegurar que você tem mais exatidão que eu? Tampouco eu tenho certeza que já aprendi e sei tudo que podia.

E sigo me policiando para criticar instituições, órgãos, entidades, movimentos – não a vida particular de sujeitos, não o que cada um faz ou deixa de fazer da sua intimidade, não a liberdade que cada um tem de inclusive dar de ombros pra sociedade inteira.

Essa sou eu.

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